Quem nunca teve um cão não sabe o que é ser amado. Não sei se foi Kant que o disse ou qualquer outro filósofo que tenha escrito sobre o sentimento da angústia. Poderia ter sido o marinheiro. Ou outro qualquer navegante porque a vida tem muitos outros mares e muitas outras marés para as pessoas navegarem.
O cão… Desde tempos imemoriais, dos segredos das areias do velho Egipto dos faraós, que o cão viaja ao lado do homem. Ou por dentro do homem. De ser tão antiga a história confundiu – os, entrelaçou raízes, misturou as vidas. Vida de cão. Sobretudo as vidas que viajam. Já sabeis: para quem viaja sem rumo, sem destino certo, nenhum vento é favorável. E os vadios, os abandonados não têm rumo nem destino certo. Podem apenas esperar uma monção favorável que quase nunca sopra. Para sustento lhes basta um afago, a ternura duma mão, um olhar, mesmo que volátil, e viajarão sempre carregando a suas fomes milenares e as cicatrizes do abandono. Brel, muito antes de navegar, já trazia por dentro um desses cães:
Laisse moi devenir l’ombre de ton ombre
L’ombre de ta main
L’ombre de ton chien
Sentir sobre a sombra o afago da mão querida, eis quanto bastava para diluir a corrosão. Por certo o sabia o marinheiro sentado a uma isolada mesa do bar: havia sempre um cão que ia a bordo. E o barco, todos os barcos viajam sempre até encalharem ou naufragarem, que também são destinos de cão. Sei dum barco que naufragou um dia nas planícies de Soria:
Oye otra vez, Dios mio, mi corazón clamar
Señor, ya estamos solos mi corazón y la mar
Sim, eu sei porque Machado disse isto. E soube-o melhor quando o rumo do meu barco se tornou incerto fazendo ganir o cão que ia a bordo.
Texto de Sérgio Paulo Silva.
1 comentário:
"...
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
..."
(Daniel Filipe, in 'A Invenção do Amor´')
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