quinta-feira, 2 de abril de 2009

"Torreira"


"A Torreira, as "Areias", para os amantes da natureza sabia a paraíso. No deserto de dunas entre duas águas se implantou, na restringa que o vento semeara, transformando a grande baía onde desaguava o Vouga no delta que se diz ria, mas é rio, o "nosso rio". Bom sítio para as xávegas da sardinha. Assim nasceu e medrou a povoação que aí está. Sem frigoríficos nem camionetas, o peixinho (ah, a sardinha do nosso mar quase despida de escamas!) tinha de ser rapidamente vendido nas terras marinhoas por dez réis de mel coado; uma fartura em comparação com o aperto da gente mais para as serras para quem o peixe um luxo, de regra uma sardinha para três, e viva o velho. Com ele na canastra nos batiam à porta as peixeiras, tão bem lembradas na estátua erguida no antigo fato da Carneira, agora Largo da Varina, tão sugestiva que parece correr pelo areal ( a vila da Murtosa nunca teve nenhuma; a que assim se dizia estátua não passava de um alto-relevo talhado no monumento à independência municipal e que, não resistindo ao olhar de revés de quem nela rejeitava a representação, a mulher da Murtosa, teve o destino da cacaria para dar lugar ao que aí está). O peixinho da teca, quando o mar não se fazia ruim, valia de tranca da barriga à gente condenada a arrastar-se por ali menos livre que as lagartixas na areia. Leia-se o romance "Servidão" de Assis Esperança. Nesses tempos ominosos, não havia praia mais chique da Figueira à Granja. Espinho não passava então de uns palheiros de pescadores. Pois Espinho desbancaria a Torreira por obra da via-férrea, primeiro a do Norte, depois a do Vale-do-Vouga. Mas tornou-se mais nossa a praia, dos fiéis das terras marinhoas e vizinhas. De uma banda a ria, da outra o mar, ligava-os uma única estrada por onde o "progresso" lhe haveria de oferecer um "americano" à vela, quando não a burro, a vapor, e até eléctrico; para o norte, a capela do S.Paio com o seu ermitão no quase deserto, que só povoado pelas festas.
Nem telefone, nem farmácia, nem pensões, nen electricidade, e o silêncio que o ronrom do mar sublinhava, quebrava-o a corneta do homem da rampa, de aviso à partida do mercantel da travessia, e ainda o guisalhar dos bois pelos "fatos" à ida e à vinda da faina."
Joaquim Lagoeiro

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