"Anoitecia. O sol sumira-se no horizonte por detrás de uma nuvem escura, franjada, que a lua debruava de oiro. Mais longe, a norte e a sul, o debrum passava a ser esbranquiçado brilhante, com intervalos luzentes nos mais elevados cumes. Pelo céu, aqui e além, viam-se farrapos de nuvens pelos quais se espalhavam as cores do espectro que o sol, na agonia lhes dispensava, como último adeus do dia a desaparecer na fuga para o outro hemisfério. O amarelo e o laranja predominavam nas ilhas flutuantes das nuvens mais próximas e o verde e o roxo coloriam as mais distantes para as bandas do nascente. E, pouco a pouco, as sombras iam caindo e o silêncio foi-se apossando da tripulação barulhenta do barco.
Já a caminho da ribeira da aldeia, nasceu a lua. No canal, as rugas de água multiplicavam as luzes reflectidas, em rosário de contas luminosas, ao lado da embarcação.
A lua ascendia em quarto crescente avantajado; em torno abronzeava-se a atmosfera e havia uma ligeira viração de suave melancolia a cobrir-nos a todos, na contemplação daquele quadro que pedia a paleta de Corot.
Tudo recolhia. Os barcos da faina do dia, os trabalhadores das mondas dos milheirais e da abertura e limpeza das rigueiras dos juncais vizinhos. Chilreavam vagamente as aves mais retardatárias que se acoitavam nos campos marginais. As codornizes por lá se conservavam. A fortaleza das chuvas ainda não as fizera descer aos campos em busca da milhã. Mas essas aves de há muito dormiam sono alvoroçado, com receio dos caçadores.
Todos - e até a nossa caravana - se sentiam fatigados a caminho dos lares, naquele lusco-fusco crepuscular em que a natureza se torna mais modesta, na quietação das coisas."
Egas Moniz in A Nossa Casa
9 comentários:
A surpresa é permanente!
Parabéns.
Não conheço "A Nossa Casa"... Ainda existirá por aí à venda?
Boas Laurus, o exemplar que tenho é bastante antigo mas vou tentar saber alguma coisa.
Obrigado.
A propósito de ontem e anteontem
“Posfácio à Segunda Edição
A nova edição de um livro significa que esse livro não morreu. (...) Um livro que se reedita é um livro que se esgotou. Portanto: Quem o esgotou? Quem o leu? E porquê? (...) Dúvidas graves de quem não desejaria que o seu romance fosse apenas ópio, claro está. (...) Alguém que, muitas vezes, põe este problema: valerá a pena escrever romances? E estoutro: valerá a pena lê-los?
Sim; porque leio eu um romance? Admitamos que há numerosas razões e que uma delas pode ser esta: passar o tempo. (...) Independentemente de me ajudar a passar o tempo, a leitura dum romance multiplica em várias direcções a minha pobre vida quotidiana, permitindo-me sonhar. Mas não só: para além desse alargamento de actividade que me lança num palco imaginário, a leitura satisfaz o meu amor desinteressado pelas histórias. Porque gosto de ouvir histórias, mas nem sempre os amigos as têm “verdadeiras” para contar. E nem sempre eu estou com os amigos. Essas histórias – ouvidas ou lidas, real ou fingidamente verdadeiras – ajudam-me a sair de mim próprio e a descobrir o mundo. (...)”
in 2ª edição de A Cidade das Flores, de Augusto Abelaira. 1961
Foi reeditado 8 vezes, a última em 1990. Descobri o AA apenas no fim da década de 90 e pena é que seja tão difícil de encontrar. Ele e quem escreveu com tanta delicadeza e humanismo, como vários dos textos transcritos no blog. A sua biblioteca é invejável.
Obrigado Maffie, gostei muito.
Laurus, em mail que me enviou o meu amigo Sérgio Silva, que já utilizou excertos dele nos seus livros sobre as Enguias e sobre o S.Paio, reforçando o facto de ser de agradável leitura, confirma a reedição recente do livro pela Câmara Municipal de Estarreja
Registado. Vou passar por aí nas minhas deambulações. Mais uma vez, obrigado.
De nada, mande sempre.
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