"Mas a ria enche-se de asas brancas, garças reais que coalham o azul, além sobre a barra, onde a névoa fumega indecisa e lenta, e do outro lado, sobre Pardelhas, Estarreja, até Ovar bolinando ao vento. É uma verdadeira esquadra, embandeirada em festa, porque hoje é dia de São Paio, na Torreira. Cada barco traz a sua povoação, a sua aldeia, a sua canção, as suas guitarras e adufes. A ria torna-se melodiosa, e sussurra, vibrante nas suas ondas de água, finas como cabelos de mulher, que os ventos represados percutem como uma arcada de violino. Durante muito tempo embala-nos aquela música aquática, dolente e enlanguescedora. As tonalidades mudam. Já não há azul. Os longes tornaram-se brumosos, e a água oleosa, baça, não tem uma vaga, uma crispação. Dir-se-ia um lago imobilizado por um silêncio astral. Um cinzento de agonia envolve esta paisagem de além mundo,prostrada na morte , se o sol não acordar antes da tarde.
Mas sobre a Torreira estralejam os primeiros foguetes da festa com os seus balões brancos que, num jeito de pára-quedas, ficam a pairar no céu, e as canções dos barcos, que já não se ouviam, volta a ecoar numa harmonia de alaúde, sonambúlicas na sua tristeza de ladaínha. Nem no dia de hoje o homem deixou a faina da ria. Ainda tem tempo para ir à sua casa lacustre trocar os farrapos curtidos de salmoura pela véstia negra de festa. À tona d'água vogam os moliceiros, de amura baixa, velas brancas, quadradas muito altas sobre o mastro, a proa subida e recurvada como o pescoço dum cisne, voltado para trás. O seu galbo esbelto, de fina estrutura náutica, que alguns dizem herdado dos Fenícios, mas que seria mais exacto, talvez, atribuir às embarcações dos Vikings, é uma curva aláda, quase imponderável, que não fende as águas, antes desliza desposando as suas formas líquidas, numa subtil perfeição de equilíbrio.
Cada um ostenta à proa, num ingénuo painel pintado de cores álacres, numa rusticidade de ícone, a que não falta o fundo de oiro, um rei coroado, de sumptuoso manto de arminhos, com todos os atributos de majestade. É modelo antigo que a tradição mantém aínda. Mas há variantes. A mais vulgar é um par de noivos com grande legenda de graciosa malícia, que o artista assina.
Dois homens, um à vara e outo ao moliço, este último com dois ancinhos, verdadeiras cravelhas de guitarra que vão rapando o fundo da ria e são levantados, alternadamente, constítuem toda a sua tripulação. Há dezenas, centenas, todos do mesmo tipo, variando, apenas, na pintura da quilha, por vezes recortada da «falca», em largas bandas horizontais, onde o negro é constante, orlando dum almagre que criou ferrugem de oiro.
Mas a ria enche-se, mais e mais, de velas brancas. Parecem as núpcias do mar, que vêm de longe, de Aveiro, no seu labirinto de esteiros, vales e canais, aqui alargando, em golfos de contornada parábola, além mais impetuoso e extenso, quase sem limites terrestres, carreando peixe ou criando-o no seu fundo rico de plâncton."
texto-Artur Portela
gravura-Maluda
2 comentários:
Os ultimos continuadores da tradição do São Paio via fluvial, isto é, nós, lá estivemos, de barco, claro.
O NVV Veronique aportou à Torreira sabado às 1930, tendo naturalmente atascado à entrada da Marina.
Mas lá nos conseguimos safar, com sabedoria e máquina.
O jantar foi a bordo do Voyager, um magnifico arroz de peixe, feito pelo Bolha, sob a minha orientação e acompanhado por inumeras e variadas garrafas de tinto.
Seguiu se o fogo junto ao Mar e mais umas quantas paragens, todas manhosas, nos tascos do Sao Paio, uma desgraça.
Por fim, domingo de manhã, que a maré não deixa escolha, lá suspendemos e a 3 nós dirigimo-nos para Aveiro.
Ainda fizemos um pic nic nautico em São Jacinto, com o Celta Morgana, o Lotsofun e o Ripinhas.
Ahhh, o leitão estava a raiar a excelencia.
Não apareceste e foi o que perdeste.
Pois.
Bom dia Comandante, vejo que é, e bem, cumpridor das nossas tradições.Este ano arredei-me dos festejos, aínda assim estive na marina da Torreira ao final da tarde de sábado a ver se o via para o cumprimentar.Lá estavam o Celta Morgana, o Carpe Mares, Casvic e companhia. Não vi o Veronique e pensei que se tivesse arrependido.Arrependido estou eu..
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