"Domingo, 8 de Novembro.
Combinamos encontro no Cais do Chegado para ir às narcejas. O Zé Maria não quiz ir e arranjou qualquer desculpa esfarrapada. Teve medo da chuva ou que a canoa fosse ao fundo.
De dia o Chegado é um dos derradeiros paraísos da Ria de Aveiro onde o vandalismo disfarçado, de progresso, ainda não assentou arraiais. Vou lá muitas vezes, ao cair da tarde, só para ver o vento.
Não sei se algum deles adormeceu ou se fui eu que me enganei nas horas.
Cheguei antes deles, noite cerrada e tive que esperar bastante. Não havia ninguem a não ser os barcos amarrados aos moirões. Apesar de tão ermo, não era assustador.
Deixei-me estar a ouvir a água marulhar e toda a sinfonia da passarada que por aqui vive, ou por aqui passa, os borrelhos, os maçaricos, as galinhas d'água, as corujas douradas.
Entretanto a claridade começou a vencer as trevas, nos recortes distantes do Caramulo e eles, finalmente, apareceram.
O dia esteve sempre cinzento e, por momentos, chegou a chover. Apesar de não ser propulsionada por um motor potente, a deslocação da canoa fazia-nos tiritar.
Vimos dois gansos voando pachorrentamente, a grande altura, talvez chegando, talvez partindo porque sempre foram raros os que por aqui se demoraram mais que um punhado de dias. Estes braços da Ria com os seus terrenos pantanosos, foram sempre uma Estrada de Santiago de todos estes peregrinos."
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Sérgio Paulo Silva in Com um bornal roto às costas
foto. - Zacarias da Mata
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