" O litoral português devia formar uma província à parte, esguia, fresca e alegre, só de areia e espuma. Eu, pelo menos, assim o vi sempre, comprida e lavada franja de renda da variegada colcha lusitana. Repartido em fatias para satisfazer a gulodice do Minho, da Beira, da Estremadura, do Alentejo e do Algarve, fica quebrada a unidade dum sorriso que desce inteiro de Norte a Sul, sem compartilhar dos humores vários que caracterizam as terras a que, por obrigação oficial, tem de pertencer. Passada a foz do rio Minho, até á embocadura do Guadiana, é sempre Atlântico e praia aberta. Um ou outro calhau que se interpõe, foi colocado de propósito ali para o mar se entreter e fazer som. Sempre Atlântico, praia... e pescadores. Sempre uma onda a desfazer-se na proa dum barco carregado de homens que esperam uma aberta para largar.
E quer seja em Viana, Póvoa, Espinho, Mira, Pedrogão, Nazaré , Peniche, Cascais, Sezimbra, Lagos, Olhão ou Tavira, é sempre a mesma mão que semeia a rede sobre o azul ondulado. É certo que de cada popa se vê um Portugal diferente, verde e gaiteiro em cima, salino e moliceiro no meio, maneirinho e a rilhar alfarroba no fundo. Camponeses de branqueta e soeste a apanhar sargaço na Apúlia, marnotos a arquitectar brancura en Aveiro, saloios a hortelar em Caneças, ganhões de pelico a lavrar em Odemira, árabes a apanhar figos em Loulé.
Metendo barco pela terra dentro, é mesmo possível ir mais longe. Olhar de perto a miséria da Ribeira, no Porto, ver semear as dunas da Gafanha, ter miragens nos campos de Coimbra num dia de cheia, ao lado dos choupos constrangidos de solidão, fotografar as tercenas abandonadas do Lis, sofrer no cenário da Arrábida uma alucinação de cor, ou cansar os olhos na tristeza dos sobreirais do Sado.
Mas são vistas... imagens variegadas dum caleidoscópio que muda no fundo da mesma luneta de observação. A realidade que irmana a grande família ribeirinha não é o fogo preso das festas da Agonia, nem a lealdade do castelo da Feira à primeira voz da Pátria, nem a sedução dos braços líquidos da ria, nem a podridão fecunda das valas do Mondego, nem a música oceânica do pinhal de Leiria, nem a desabrigada tristeza alentejana, nem a brancura das amendoeiras em flor.
É a força da maré que sim ou não deixa encalhar o barco em porto de salvamento. Um porto que é sempre a mesma praia imensa, branca, estéril, onde as mulheres, Cassandras sempre de luto, rezam e profetizam."
Miguel Torga in Portugal
2 comentários:
Poucos, entre muitos, conseguiam escrever desta forma... E as fotografias escolhidas, também ajudam...!
Muito bom. Fizeste-me lembrar um filme que vi ontem: http://www.youtube.com/watch?v=vI2quAu2IWM
M.
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