" Distingo um fundo muito roxo - o recorte dos montes. Aqui a ria mais larga, aumenta ainda e divide-se, de um lado até Ovar, do outro até Salreu. E além, e além... casinhas num reprego da encosta, onde apetece viver, perdidas no mundo e esquecidas do mundo. Mesmo à beira de água e reflectida na água a Murtosa aureolada de oiro: algumas casas brancas reluzindo, algumas árvores muito verdes em contraste e um canalzinho de abrigo para os barcos estranhos, com o leme estrambólico atravessado por um pau. Aconchego e sol. A fantástica esquadrilha desdobra-se na água que estremece, menos em certos veios que ficam lisos de propósito para reflectirem os mastros num sarrabiobisco até ao fundo.
Agora o barco encalhou e a água está dourada até onde a vista alcança. Deixo-me ficar, olhando para o fundo da areia. A meu lado há um verde que nenhuma paleta pode dar, um verde vivo, um verde trespassado da luz que se coa pelos canaviais e todo se arrepia à superficie do veio, ao mexer das quatro tábuas do barco, para enfim parar absorto no silêncio. Bóia aqui nestas águas uma alma entontecida, humilde e tímida tão ténue que pode desaparecer num sopro de um momento para o outro.Eixiste mas não se sabe bem que existe. É quase nada. Um fio de oiro, silêncio, um reflexo de luz...Andem devagarinho com o barco - não vamos nós assustá-la."
de Raul Brandão em "Os Pescadores"
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