terça-feira, 16 de março de 2010

"Ria de Aveiro"



"Mas o que tem para mim um grande encanto são os sítios ignorados da ria, onde a água cismática encharca, embebida no céu e reflectindo meia dúzia de ervas e dois barcos encalhados. Água esquecida ou pedaço do céu translúcido?...Acolá um borrão azul empoçado diante de uma trincheira verde. E este azul entranha-se na terra baixa e empapada, infiltra-se no subsolo, reaparece em fios e charcos. É inesperado e imprevisto. Não se sabe onde vai ter. Estou na terra ou na água? é um lago ou um rego? Uma vela navega entre campos verdes. É um saleiro. Ao longe na vasta planície retalhada, correndo a par de um biombo de pinheiros, outro barco desliza sobre a erva tenra dos arrozais.


...Outro canal. Carros de bois. A planície imensa cortada, riscada, atravessada por fios de água que convergem para um canal mais largo. Há charcos verdes atufados de nenúfares em flor, gordos e espalmados ao lume de água, com um botão branco a abrir. Alguns tufos de árvores rasteiras desdobram-se na água negra e profunda. Mais poças e, no Inverno e nos dias baços e parados, os ramos finos das árvores desenhando-se fio a fio, à pena, na água adormecida. No ar adormecido e na água que não existe, porque tudo parece atmosfera.


São terras impregnadas de água em baixo e envolvidas carinhosamente pela atmosfera marítima. Um rasgão e avisto os montes de sal espalhados pelo campo farto. Nos milharais andam grupos de cachopas enterradas até aos joelhos e os arrozais deslavados atiram para o céu as hastes com os pés metidos metidos na água.



Um grande trecho líquido empoçado. Lodo emaranhado de valas e de regos. Silêncio e luz. Fios de terra encaixilhando a vasta superfície dividida em rectângulos, com renques de árvores baixinhas torturadas pela poda. Silêncio húmido. Água imóvel. O que eu queria dar só o podem fazer os pintores - os tons molhados, os reflexos verdes, o galopar das nuvens fugindo sobre a imensa superfície polida, e, por fim, ao cair da tarde, a agonia dolorosa da luz. No céu não é a mesma coisa, no céu perde-se tudo num momento. Nestas poças os dourados entranham-se misturados à podridão dos verdes e levam muito tempo a esvair, agarrados numa aflição. Só aqui se compreende bem o que a luz lhe custa morrer."
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Raúl Brandão in Os pescadores
Fotos- Américo Carvalho da Silva

2 comentários:

Tiago Neves disse...

Parabéns pelo blog!

Adorei o texto, bem como as fotografias em P&B! É sempre bom divulgar esta arte.

Cumprimentos,
Tiago Neves
www.roda-do-leme.com

Laurus nobilis disse...

Belo artigo. O Raúl Brandão é um dos meus ESCRITORES e as fotografias dão o enquadramento perfeito!