quinta-feira, 1 de outubro de 2009

"Cal. 12"



Ainda está escostada num canto qualquer da casa uma velha secretária que foi durante anos laboratório do meu pai, caçador convicto que, antes das facilidades posteriores, aí se sentava a carregar os tiros em vésperas de uma qualquer incursão, fosse pelas serranias do interior com o passo largo a perseguir as perdizes, pelas nossas milhãs atrás das codornas ou das levianas narcejas acocoradas nas terras frescas da Beira-Ria. Isto vem a propósito de um amigo me ter falado hoje da " Abertura Solene" do próximo domingo, a data por que todos os caçadores esperam. Esperam mais caça, por muito pouca que ela seja, e, a maior parte deles, os que podem dizer-se caçadores, saborear a perseguição, admirar o trabalho do cão e o culminar do acto final.
Porque eles me entravam pela porta, privei com alguns dos bons, com uma paixão e um respeito pelos bichos que abatiam e recordavam com um brilho juvenil nos relatos cuidados, plenos de pormenor, quase fazendo-nos cheirar a urze, a giesta e o agreste do penedo.
Fui um cão de caça de aptidões medianas, palmilhei uns quantos socalcos à procura das aves que, ou mortas ou agonizantes, esperavam o fim.
Qual Alma Grande do Torga, abreviava-lhes o sofrimento duma chumbada menos certeira, prendia-as na trela furando-lhes o bico, limpava as mãos do sangue quente e via a passarada apagar-se.
Por muito que goste de uma perdiz à moda do Convento de Alcântara, de uma Galinhola assada envolta da sua tripa ou de outros opíparos repastos, trocava o sabor de tais manjares pelo sabor de as vêr por aí.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ora estava eu deliciado a ler o teu texto e a sentir quanto me tocava no pêlo e cai-me o balde de água fria à conta da culinária. Homem, eu também aprecio comida mas, já o escrevi, antes gostaria de dar vida ao rato para o poder continuar a perseguir. Não posso e por isso prantei a abrir o meu livro No rasto da Memória estas palavras de Unamuno:De noche,noche nuestra madre/cuando a lo lejos el recuerdo ladre.Acho que sim, que talvez estejas entre os que podem apreciar Fausto José: que ele já só vai à caça por desfastio/por entrar na barca/por passar o rio...

almagrande disse...

O facto de eu ter participado algumas vezes dos prazeres de um dia de caça fazia-me encarar o acto gastronómico de uma forma que vai além do comer. Era quase um ritual, uma refeição com um sabor especial, sobretudo para quem lá tinha andado.